sábado, 8 de dezembro de 2012

Questão capciosa FGV (delegado-MA-2012)

Questão cobrada no concurso Delegado-MA/2012-FGV (caderno tipo 4 -AZUL):

70. João e José, um sem saber da vontade do outro, resolvem matar um desafeto comum. Para tal fim, sem qualquer vínculo subjetivo, aguardam a saída do desafeto o local de trabalho e, isto ocorrendo, efetuam em momentos distintos disparos contra 
o mesmo que veio a falecer. A perícia reconheceu que os dois disparos atingiram o alvo desejado, eram fatais e capazes de ocasionar a morte instantânea da vítima, mas não conseguiu identificar qual deles acertou primeiro o alvo, ratificando que ambos seriam capazes de obter o animus desejado. Descobertos os “autores”, o fato foi levado à autoridade policial para as providências de praxe. Com base no exposto, assinale a alternativa que identifica juridicamente o fato. 
(A) João e José são co-autores do crime de homicídio. 
(B) João e José deverão responder por tentativa de homicídio. 
(C) João e José não praticaram qualquer crime, devendo ser aplicada a regra do Art. 17, do CP (crime impossível). 
(D) Um deles responderá por homicídio consumado e o outro por homicídio tentado, devendo o Promotor oferecer denúncia alternativa para que no curso da instrução seja o fato melhor apurado. 
(E) João e José são partícipes do crime de homicídio. 

GAB: "C"

Errei essa questão, como a grande maioria das pessoas com quem mantive contato. No entanto, os argumentos a seguir me parecem bem convincentes, muito embora ainda considere que andou mal a banca ao entender tratar-se de crime impossível. Segue possível embasamento teórico de que se serviu a FGV para nos pegar a todos com essa ingrata, mas interessante, surpresa. Trata-se de trecho da doutrina do professor Claudio Jose Palma Sanches, o qual, por sua vez, baseou-se nas lições de renomados pensadores tais como Flavio Augusto Monteiro de Barros, Magalhães Noronha eEugenio Zaffaroni:

"Suponhamos que na Autoria Colateral, “A” e “B”, pretendendo matar “C”, postam-se de emboscada, ignorando cada um o comportamento do outro. Ambos atiram na vítima, que vem a falecer em consequência dos ferimentos causados pela arma de “A”. Não há co-autoria nem participação. Se for possível identificar 
que o disparo da arma de “A” foi o fator gerador da morte da vítima (“C”), aquele responderá por homicídio consumado e “B” por tentativa de homicídio. Se estivesse presente o vínculo subjetivo, “A” e “B” responderiam por homicídio consumado em face da Coautoria. Ou seja, haverá Concurso de Pessoas. 
Quando se consegue definir o agente causador do resultado, como no exemplo acima, estaremos diante da AUTORIA COLATERAL CERTA. 
Quando não sabemos quem foi o autor do homicídio (exemplo supra), ambos (“A” e “B”), responderão (para alguns doutrinadores) por homicídio tentado. É a AUTORIA INCERTA.

A Autoria Incerta, “que pode decorrer da autoria colateral, ficou sem solução”, pois “sabe-se quem executou, mas ignora-se quem produziu o resultado”. (BITENCOURT, 2000, págs. 394 e 395). No mesmo sentido, Rogério Greco lembra que “dessa autoria colateral surgirá um outra, chamada autoria incerta. Sabe-se quem são os possíveis 
autores, mas não se consegue concluir (...) quem foi o produtor do resultado. Daí dizer-se que a autoria é incerta”. (GRECO, 2002, pág. 438). Rogério Greco ainda diferencia a Autoria Incerta da Autoria Desconhecida. “naquela sabe-se quem praticou as condutas, sendo que somente não se conhece, com precisão, o produtor do resultado. Na autoria desconhecida os autores é que não são conhecidos, não podendo imputar os fatos a qualquer pessoa”. (GRECO, 2002, pág. 438). 

O Iter criminis também chamado de Caminho do Crime traça hipoteticamente, um “caminho” em que o criminoso visa atingir o resultado final, ou seja, o Bem Jurídico. Há três fases antes do agente chegar a meta optata, que seria o resultado desejado pelo autor do delito. A primeira fase, cogitação, é a formação da ideia do ilícito, na mente do delinquente. Esta fase não admite punição. Nos “atos preparatórios ainda não há crime”, em regra, pois a tentativa (punida pelo Direito Penal), só se concretiza com a realização dos atos executórios. Entre os atos executórios e a meta optata, estar-se-ia a tentativa. Quando o agente exaure toda a sua potencialidade no Bem Jurídico visado, ele atinge o seu objetivo visado, a sua meta optata (a consumação). 
Não podemos olvidar que o Direito Penal, pode punir os atos preparatórios quando tratar-se de delitos autônomos, como “petrechos para falsificação de moeda” (art. 291, CP) e “quadrilha ou bando” (art. 288, CP), dentre outros (BARROS, 2003, págs. 263-264). 

Vamos a mais um exemplo, citado por Flávio Augusto Monteiro de Barros (2003). Um marido está sendo vítima de veneno ministrado em sua comida, diariamente, pela esposa e pela amante. Ambas com intenção de matá-lo. Meses depois o marido vem a morrer, vítima de envenenamento. A perícia encontra, no organismo da vítima, duas substâncias: veneno e vitamina. “Apurou-se que a esposa, por engano, ministrava-lhe vitamina, em vez de veneno. O veneno, porém, ele ingeria durante o café ardilosamente preparado por sua concubina”. (BARROS, 2003, pág. 424). Flávio Monteiro de Barros diz que se existisse Vínculo Subjetivo entre as autoras do delito (conluio), ambas responderiam por homicídio qualificado em face do Concurso de Pessoas. Mas se uma desconhecesse a conduta da outra, a amante responderia por homicídio qualificado e a esposa por Crime Impossível (art. 17, CP) (BARROS, 2003, pág. 424). Mas se não fosse possível apurar quem ministrou a vitamina e quem 
preparou o veneno, estaríamos “diante do tormentoso problema da autoria incerta 
dentro da autoria colateral”. (BARROS, 2003, pág. 424). A Autoria Incerta não se confunde com a Cooperação Dolosamente Distinta, onde as pessoas poderão ser responsabilizadas por Crimes diferentes, por tratar-se de exceção a Teoria Monista. Não se aplica neste caso, a Cooperação, pois nesta há necessidade de Nexo Subjetivo entre os participantes, o que não ocorre na Autoria Incerta. 

No Crime Impossível “não se pune a tentativa quando há ineficácia absoluta do meio ou impropriedade absoluta do objeto”. (NORONHA, 2001, pág. 133). Haverá ineficácia absoluta do meio quando ele, por si só, não puder produzir o resultado. Como no caso supracitado, em que um dos agentes estava ministrando vitamina, pensando que era veneno, na comida da vítima. Poderíamos citar outro exemplo como naquele em que a “mulher erroneamente se julga prenhe e pratica manobras abortivas” (NORONHA, 2001, pág. 133). Existirá ineficácia absoluta do objeto quando o agente tentar matar um cadáver, por exemplo. (CAPEZ, 2002, págs. 226-227). Não devemos olvidar que, existindo ineficácia relativa do meio (palito que pode perfurar a moleira do recém-nascido) ou do objeto (larápio que tenta roubar carteira de um velhinho - que se encontrava no bolso direito, puxando-a pelo bolso esquerdo), haverá tentativa (CAPEZ, 2002, págs. 226-227). 

Para Flávio Monteiro de Barros, as duas “autoras” - do exemplo citado acima - da Autoria Colateral Incerta deveriam ser absolvidas, “já que uma delas teria praticado crime impossível”. (BARROS, 2003, pág. 424). Nesse mesmo sentido, lembra o professor Magalhães Noronha “uma das pessoas cometeu um Crime Impossível, por ineficácia absoluta do meio (...) tais casos não encontram solução no Código. Na iminência de condenar um inocente, absolver-se-ão naturalmente os dois acusados”. (NORONHA, 2001, pág. 223). 

A “Contrario Sensu”, Bitencourt diz que não seria possível absolvê-las “porque ambos participaram de um crime de autoria conhecida. A solução será condená-los por tentativa de homicídio, abstraindo-se o resultado, cuja autoria é desconhecida” (BITENCOURT, 2000, págs. 394 e 395). Comunga da mesma idéia o Damásio E. de Jesus (JESUS, 2002, pág. 434).

Discordamos, com a devida vênia, pois estar-se-ia violando um dos Princípios mais importantes do Direito Constitucional, o Princípio da Legalidade. Referido Princípio, apregoa que “qualquer comando estatal, para ser juridicamente válido, há de emanar de regra legal”. (CAPEZ, 2003, págs. 210-211). 

Fernando Capez preceitua que este Princípio, no campo do Direito Penal, “protege o indivíduo, evitando que seja surpreendido com qualquer incriminação, uma vez que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal (art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal)”. (CAPEZ, 2003, pág. 211). 

Ora, todos sabemos que a Constituição Federal está acima de qualquer legislação e que um Princípio está acima de qualquer norma, uma vez que precede esta. Um dos agentes, no exemplo do envenenamento dito em linhas pretéritas, cometeu homicídio qualificado. Mas condenar um inocente, não seria justo, mesmo que este tenha cogitado a execução do Crime. O Direito Penal não pune nem a cogitação (por tratar-se de uma fase subjetiva, aferida na mente do agente, antes dos atos preparatórios), e nem o Crime Impossível (que ocorreu com um dos agentes do exemplo supra), uma vez que houve ineficácia absoluta do meio. Condenar os dois agentes por tentativa de homicídio seria punir o Crime Impossível e os atos de cogitação. 

Assim, há de se visualizar uma atipicidade na Autoria Incerta, ou uma Autoria Incerta Atípica, uma vez que na Autoria Incerta propriamente dita, a doutrina decidiu punir os dois possíveis agentes por tentativa. Destarte, estar-se-ia configurado a Autoria Incerta Atípica quando dois agentes, um sem saber da conduta do outro, empregam meios para lesar uma terceira pessoa. Contudo, o meio empregado por um deles é inócuo, caracterizando Crime Impossível. Os dois possíveis autores deverão ser absolvidos, uma vez que o Direito Penal não pune a Cogitação. 

Difere a Autoria Incerta da Autoria Incerta Atípica, uma vez que naquela, o meio empregado pelos agentes não é inócuo, não caracterizando Crime Impossível, sendo possível punir a preparação. Seria o exemplo clássico das armas de fogo, citado em linhas pretéritas, onde não se sabe de qual arma saiu o tiro fatal. Nesse caso, a doutrina pune os dois agentes por tentativa de homicídio. Entretanto, não seria justo 
condenar uma pessoa que a Lei Penal não pune. Se isto ocorresse, as sanções na vida civil e social deste inocente, mesmo que ele não fosse preso, seriam catastróficas. 

Infelizmente, o autor do delito ter-se-ia que ser absolvido. O agente, seria 
assim, beneficiado por uma causa de “exclusão de culpabilidade” incomum, diga-se de passagem. O Direito à vida, à liberdade são Direitos inerentes à pessoa. Devemos analisar a questão em relação somente aos acusados, pois, condenando um inocente este se tornaria vítima também."

Veja o que diz Cleber Masson (Direito Penal Esquematizado, 2012 ):

Imagine-se que “João”, casado com “Maria”, seja amante de “Tereza”. Todas as manhãs, juntamente com a esposa, toma café em casa. Em seguida, antes de ingressar no trabalho, passa na re
sidência da amante, que não sabe ser ele casado, para com ela também fazer o desjejum. Em determinado dia, a esposa e a amante descobrem sobre a existência de outra mulher na vida de “João”. Revoltadas, compram venenos para matá-lo. Na manhã seguinte, o adúltero bebe uma xícara de café, envenenado, em sua casa. Parte para a residência da amante, e também bebe uma xícara de café com veneno. Morre algumas horas depois. Realiza-se a perícia, e o laudo conclui pela existência de duas substâncias no sangue de “João”: veneno de rato e talco. “Maria” e “Tereza”, orgulhosas, confessam ter colocado veneno no café do falecido traidor. 
A situação é o seguinte: uma das mulheres praticou homicídio, e a outra, crime impossível por ineficácia absoluta do meio (CP, art. 17). As provas colhidas durante o inquérito policial não apontam qual foi a conduta de cada uma delas. O que deve fazer o representante do Ministério Público ao receber o inquérito policial relatado? Devo denunciá-las? 
A única solução é o arquivamento do inquérito policial. Há um homicídio, o pobre “João” está morto, mas às vingativas mulheres aplica-se o crime impossível. Uma matou, mas a outra nada fez. Como não há concurso de pessoas, por ausência do vínculo subjetivo, ambas devem ser beneficiadas pela dúvida. 
Em resumo, se no bojo de uma autoria incerta todos os envolvidos praticaram atos de execução, devem responder pela tentativa do crime. Mas, se um deles incidiu em crime impossível, a causa de atipicididade a todos se estende.


Por sua vez, em sede de contra-argumentação, temos a doutrina de Cesar Roberto Bitencourt: "Imagine-se que no exemplo referido não se possa apurar qual dos dois agentes matou a vítima. Aí surge a chamada autoria incerta, que não se confunde com autoria desconhecida ou ignorada. Nesta, se desconhece quem praticou a ação; na autoria incerta sabe-se quem a executou, mas ignora-se quem produziu o resultado. O Código Penal de 1940 ao adotar a teoria da equivalência das condições pensou ter resolvido a vexata quaestio da chamada autoria incerta, quando não houver ajuste entre os concorrentes (EXp. Motivos n. 22). Foium equívoco: a solução só ocorre para situações que houver, pelo menos, a adesão à conduta alheia. A autoria incerta, que pode decorrer da autoria colateral, ficou sem solução. No exemplo supracitado, punir a ambos por homicídio é impossível, porque um deles ficou apenas na tentativa; absolvê-los também é inadimissível, porque ambos participaram de um crime de autoria conhecida. A solução será condená-los por tentativa de homicídio, abstraindo-se o resultado, cuja autoria é desconhecida." 

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